O término do julgamento da Ação Penal nº 470 no Supremo Tribunal Federal e as decisões exaradas pelos eminentes magistrados durante todo o processo revelam que ali, na mais alta corte de justiça de nosso país, se processou um julgamento político e não jurídico. Prevaleceu durante todo o tempo a exceção, seja na importação e aplicação capenga de inovações jurídicas de além mar como a “Teoria do Domínio do Fato”, seja na recusa em assegurar aos réus o duplo grau de jurisdição, seja na não consideração de documentos e mesmo processos que poderiam favorecer os réus.
O magistrado relator atuou o tempo todo como implacável acusador e não como imparcial juiz, de quem se esperava prudência, imparcialidade, respeito ao ordenamento jurídico de nosso país e à jurisprudência do próprio Supremo Tribunal Federal.
Outros magistrados incluíram em seus votos comentários, opiniões e desejos que foram além do admissível e que tinham como pano de fundo o objetivo de criminalizar a política, estigmatizar as alianças partidárias e vender ao povo brasileiro a ideia de que são sempre sujas e mercenárias as relações políticas entre as coligações que se formam para disputar pleitos ou para exercer governos.
O próprio Procurador Geral da República, do alto de sua atuação midiática e nem sempre transparente, chegou a proferir solenemente perante a imprensa seu desejo de que os resultados no julgamento da Ação Penal 470 influíssem nas eleições municipais que então se realizavam.
Foi um julgamento político no qual prevaleceram regras de exceção, no qual a suprema corte se dobrou às pressões da grande mídia também partidarizada, no qual magistrados mudaram o entendimento de acórdãos proferidos por eles mesmos e no qual a metodologia escolhida pelo magistrado relator, de fatiamento por temas, permitiu a condenação de réus sem provas, baseadas apenas no “ouvir dizer”, no “não é plausível que não soubesse”, no “presume-se que soubesse”.
A Corte suprema da Justiça brasileira conduziu o julgamento da Ação Penal 470 com claro viés político, assumindo postura partidarizada, inebriada com os holofotes da mídia conservadora e ao arrepio das mais comezinhas regras do direito, do devido processo legal e dos preceitos da Constituição Brasileira.
Questionado sobre as mudanças na interpretação da Constituição, um dos magistrados chegou a estufar o peito e dizer: “… a Constituição é aquilo que o STF diz que ela é”. E foi com este viés que se processou o ato final do julgamento da Ação Penal 470, quando cinco dos magistrados optaram por reescrever a Constituição e, se arvorando detentores de poderes supremos, decidiram cassar mandatos parlamentares conferidos pelo povo.
O último magistrado a proferir seu voto não se contentou apenas com a ilegalidade de se ignorar o art. 55 da Constituição Federal e, investido de sua “superioridade”, completou seu voto com clara ameaça à Câmara dos Deputados dizendo: "Susceptibilidades partidárias, posturas políticas irresponsáveis e juridicamente inaceitáveis de que não se cumpriria uma decisão do Supremo Tribunal Federal revestida da legalidade da coisa julgada é improbidade e prevaricação". E foi além: "Insubordinação legislativa ou executiva ao comando emergente de uma decisão judicial é intolerável, inaceitável e incompreensível".
O absurdo é que o mesmo magistrado, em sentença proferida há 17 anos, dizia exatamente o contrário do que agora decidiu nesta Ação Penal de tudo e por tudo de exceção. O ministro Celso de Mello, decano do STF, no ACÓRDÃO Nº 179.502-6, ao examinar processo de perda de mandato de um vereador, proferiu voto que ultrapassava o caso em pauta e referia-se às prerrogativas do Poder Legislativo.
Disse o magistrado naquele voto:
"A norma inscrita no art. 55, § 2o, da Carta Federal, enquanto preceito de direito singular, encerra uma importante garantia constitucional destinada a preservar, salvo deliberação em contrário da própria instituição parlamentar, a intangibilidade do mandato titularizado pelo membro do Congresso Nacional, impedindo, desse modo, que uma decisão emanada de outro poder (o Poder Judiciário) implique, como conseqüência virtual dela emergente, a suspensão dos direitos políticos e a própria perda do mandato parlamentar."
"(…) É que o congressista, enquanto perdurar o seu mandato, só poderá ser deste excepcionalmente privado, em ocorrendo condenação penal transitada em julgado, por efeito exclusivo de deliberação tomada pelo voto secreto e pela maioria absoluta dos membros de sua própria Casa Legislativa."
"Não se pode perder de perspectiva, na análise da norma inscrita no art. 55, § 2o, da Constituição Federal, que esse preceito acha-se vocacionado a dispensar efetiva tutela ao exercício do mandato parlamentar, inviabilizando qualquer ensaio de ingerência de outro poder na esfera de atuação institucional do Legislativo."
"Trata-se de prerrogativa que, instituída em favor dos membros do Congresso Nacional, veio a ser consagrada pela própria Lei Fundamental da República.
O legislador constituinte, ao dispensar esse especial e diferenciado tratamento ao parlamentar da União, certamente teve em consideração a necessidade de atender ao postulado da separação de poderes e de fazer respeitar a independência político-jurídica dos membros do Congresso Nacional."
Mudou a Constituição ou mudou a opinião do ilustre magistrado? O que o fez mudar de entendimento? Como pode um magistrado decidir num dia de uma forma e no outro de maneira completamente diversa?
Em passado recente, ao julgarem ação penal contra o então deputado Asdrubal Bentes, acusado de esterilização de mulheres no estado do Pará, Celso de Mello, Luix Fux, Marco Aurélio Mello, Gilmar Mendes e Ayres Britto foram claros na defesa do cumprimento do disposto no art. 5º da Constituição Federal.
O ministro Luiz Fux, ao julgar o caso, afirmou: “Com o trânsito em julgado, lance-se o nome do réu no rol dos culpados e oficie-se a Câmara dos Deputados para os fins do art. 55, § 2º, da Constituição Federal."
O ministro Marco Aurélio o secundou: "Também, Presidente, ainda no âmbito da eventualidade, penso que não cabe ao Supremo a iniciativa visando compelir a Mesa diretiva da Câmara dos Deputados a deliberar quanto à perda do mandato, presente o artigo 55, inciso VI do § 2º, da Constituição Federal. Por quê? Porque, se formos a esse dispositivo, veremos que o Supremo não tem a iniciativa para chegar-se à perda de mandato por deliberação da Câmara".
Gilmar Mendes, no mesmo acórdão, afirmava: "No que diz respeito à questão suscitada pelo Ministro Ayres Britto, fico com a posição do Relator, que faz a comunicação para que a Câmara aplique tal como seja de seu entendimento."
E o ex-presidente do STF, ministro Ayres Britto, foi taxativo em seu voto: "Só que a Constituição atual não habilita o Judiciário a decretar a perda, nunca, dos direitos políticos, só a suspensão".
Ressalte-se os votos corajosos dos ministros Ricardo Lewandowski, Rosa Weber, Carmen Lúcia e Dias Toffoli que, remando contra a maré, ousaram discordar de seus pares e da pressão midiática. A ministra Rosa Weber concluiu seu voto sobre a cassação ou não dos parlamentares condenados na Ação Pelal 470 dizendo: "um parlamentar não pode perder o mandato por decisão de outro poder, já que foi eleito pela soberania popular".
Ao analisar esta absurda e inaceitável decisão do STF, que contraria a Constituição Federal, recorro às palavras publicadas pelo articulista Saulo Leblon no site Carta Maior. Diz ele com especial oportunidade: “Perde toda a Nação quando uma Corte Suprema deixa de ser referência para ser referida. Ao tomar partido, o STF tornou-se um foco irradiador de impasses; uma usina de sobressaltos constitucionais. Trocou a equidistância das togas pelo turbante de um sultão e pretende fazer do país uma democracia de eunucos. Ressente-se a sociedade brasileira, perigosamente, de uma Corte Suprema que ao contrário de conflagrar a democracia a pacifique, ao contrário de desprestigia-la a engrandeça, ao contrário de tumultua-la a estabilize”.
Creio que vivemos no Brasil um momento da maior gravidade, onde existe o risco real de confronto de instituições por conta de decisões exaradas no bojo de um julgamento de exceção e onde um poder se arvora detentor do poder moderador, acima de todos os outros e acima da própria Constituição.
E mal o Supremo Tribunal Federal tomou uma decisão contra a Constituição, eis que surge, no mesmo diapasão, nova decisão proferida por um de seus integrantes que se sentiu autorizado a se imiscuir em questões interna corporis e ditar ritos procedimentais ao Congresso Nacional para a apreciação de vetos. Salta aos olhos da Nação que o ministro Luiz Fux ultrapassou todos os limites ao impor ao Congresso Nacional a proibição de votação preferencial do veto à lei dos royalties e exigir que seja seguida ordem cronológica na apreciação de todos os mais de 3.000 vetos. Agiu o ilustre ministro como magistrado ou como um cidadão carioca desejoso de manter intocadas as receitas de royalties de seu estado natal?
E é diante desta situação absurda e inimaginável em um país democrático onde a Constituição Federal reza a independência dos poderes, que manifesto meu apoio e minha solidariedade ao Presidente Marco Maia, que tem sido firme na defesa da Câmara dos Deputados e de suas prerrogativas.
Sou de opinião que a Câmara dos Deputados e o Poder Legislativo não podem se agachar e se render aos gritos da turba publicada, dos colunistas da grande mídia como se renderam alguns ministros do STF. Quem decide sobre perda ou não de mandatos conferidos pelo povo é o Poder Legislativo. Quem decide sobre o rito interno das votações legislativas são a Câmara dos Deputados, o Senado Federal e o Congresso Nacional. Está claro na Constituição. Estava claro na vontade dos constituintes que elaboraram esta regra no pós-ditadura, quando o Executivo cassava mandatos e o STF, subserviente, fazia o mesmo.
Alice Portugal
Deputada Federal